Ter o tempo pra sentir saudades: relato de quem tem vivido o mundo da janela

9 abr

Há, exatamente, três meses descobri que estava com câncer na tireóide. O chão se abriu, a parede ruiu e logo em seguida descobri que era um tipo com altíssimo índice de cura. Voltei a pisar no chão. Os números estavam do meu lado, me pontuou um amigo que tinha passado pela mesma doença. Gravei a boa sentença na cabeça e fui para o combate. A regra era: cirurgia, terapia, um tempo para ajustar o hormônio e pronto, tudo voltaria ao normal. Foi assim que alguns médicos me fizeram acreditar. Foi assim que alguns amigos e/ou conhecidos que passaram pela mesma situação (ou com entes próximos) tentaram me fazer acreditar. Só que não! Não foi assim que aconteceu. Não foi (não está sendo) tudo assim tão simples. Agradeço profundamente por não ter sido. Meu organismo se mostrou como um caso particular. Mas o mais importante foi descobrir que tinha muito entendimento pronto pra ser semeado nesse processo. Adoro pensar enquanto semeio! Mas já que os números estavam ao meu favor, não adiamos a planejada viagem. Foi incrível dividir o tempo dos pensamentos mais sérios (às vezes tensos) com as aulas de inglês, com o que deveríamos fazer nas horas vagas (comprar, passear, visitar, conhecer, etc) e conversar sobre o que viria pela frente. Reflexão. Sim, muita reflexão, minha e da Adriana Carvalho que vive junto esse momento comigo. De volta ao Brasil, hospital, avental, cirurgia e lá se foram duas paratireóides, a tireóide inteira, seus três tumores malvados e minha capacidade de produzir hormônios dali. Dores, muitas delas. Pós-cirurgia é chato… um dia a mais de hospital e comecei a passar mal. Ops! Acabei saindo do script. Alguns protocolos furaram. Passei muito mal e passo até hoje, com muito menor intensidade, é certo, mas ainda sinto boa parte dos efeitos. Além do clássico estômago devolvedor de mal-entendidos gastronômicos, o cansaço exacerbado e os músculos desobedientes. Vontade?! No máximo, ir dar bom dia, boa tarde, boa noite para as orquídeas e hortaliças orgânicas do quintal. Sistema quarto x quarto. Quarto – banheiro – quarto – sala – quarto – cozinha – quarto – quintal (varanda) – quarto. Está de ótimo tamanho. Isso, sem comentar a fase pré, durante e pós-terapia radioativa. Se eu relatar, vai ficar parecendo ladainha e eu prefiro tirar um pouco do peso. Disso tudo, o mais maravilhoso foi me envolver de um calor de amor indescritível. Fiquei pequena, sim, mas reconhecer a grandeza de estar ao lado, ouvir a voz, sentir os cuidados de quem a gente ama e escolheu pra ser família, não tem descrição de tamanha gratidão de amor.

Mas o que expresso é relato, não é reclame. Apesar dos incômodos que ainda insistem, cada segundo tem sido uma dádiva de reflexão, pois tem me permitido pensar sobre as coisas, sobre os mundos, os projetos, as ideias, as importâncias, as relevâncias, as reações, os entendimentos. Ficar em estado de hipotireoidismo severo por tanto tempo, me deixou calma, contemplativa, serena, quieta, lenta. Muito lenta. Muito lenta, mesmo, mesmo, mesmo. Isso foi e está sendo importante. Olho no retrovisor da memória de poucos meses atrás e consigo me enxergar ligada em 550 volts, trabalhando muitas vezes 14h/dia, lotada de afazeres e responsabilidades, com quase todos os prazos estourados ou prestes a estourar. Passava, até o final do semestre passado, o dia lamentando (com razão) o cansaço extremo. Uma estafa automatizada que me fazia cada vez mais frustrada, mais cansada e com a sensação de dever incompleto.

Mas eu fui obrigada a parar e ver o mundo em câmera lenta. Tem seus prejuízos, claro: o salário minguado pelo INSS, a bicicleta empoeirada, o ânimo desanimado, os tais mal-entendidos gastronômicos insistentes, os cansaços persistentes… Mas tudo isso é muito rico e me dá a oportunidade de vivenciar outras perspectivas. O fato é que com a internet e as mídias sociais, o mundo me mantém muito ativa, com uma janela que me transporta e faz permanecerem vivas, as minhas inquietações discursivas. Mas vejo, aqui desta janela, quase todo mundo ainda imerso no corre-corre, no “tô sem tempo“, “perdi o prazo“, “cansei do dia”, “quero férias logo”, ou no “vou ter que desmarcar”, que viraram frases prontas da rotina de quase todos nós. Eu estava nessa. Talvez eu volte em breve para esse redemoinho frenético. Tomara que não! Tomara que eu releia este texto e me faça relembrar deste tempo presente e que possa fazer dele, presença certa no futuro bem próximo. Eu quero manter o tempo da contemplação. Eu quero manter o olhar que dá voltas pelo lado de fora. Eu quero manter a paciência para o entendimento. Sem explodir por dentro. Sem explodir por fora.

Mas, antes de tanto querer, eu preciso agradecer, pois voltei a perceber a saudade, voltei a sentir saudades sinceras. Da família, dos amigos (dos idos e dos ‘hojes’), de muitos queridos colegas de trabalho, dos alunos que são pérolas, das crianças, dos bichos. Sinto saudades!! Muitas saudades! Não estou mais esgotada. Não sobreponho a estafa aos melhores dos meus meus pensamentos. É muito rico pensar em alguém que gosto e sentir vontade de ficar alguns minutos conversando, sem pressa. Tem tantos de vocês, meus amigos, que estão vindo e voltando assim, em minhas saudades serenas. É maravilhoso sentir – em tempo e no tempo – o lado mais puro da saudade.

Sinto saudades sinceras!

Texto feito e publicado no Facebook em 3 de setembro de 2014

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